Crônica Ruas cheias de animais famintos
Ruas cheias de animais famintos, calçadas coloridas com o sangue do resto de carne da feira. Sol a pino. Sertão de agosto. Pessoas que falam em voz mansa e grossa, pessoas de muitas vozes também. Timbres que eu não saberia definir. O lombo ardendo, é peso e é calor. Peixe morto no chão, todo não, só sua cabeça. Olhos esbugalhados, o tácito fator da morte. Olhos que olham muito e nada olham, não tem vida. Abertos, bem abertos. Como em um momento epifânico, a cabeça do peixe, com esses olhos, assim, me lembra também algum êxtase de encontro com Deus. E tem sangue. É penitência, oferenda, redenção. O cheiro do açafrão e das ervas... vejo uma senhora de cabelos brancos cuidando disso. Tudo é magia, disseram para mim. E eu vejo.
Caminho pela rua, sentido as pernas fracas, trêmulas. Após um gole de café, uma banana velha comida, não se é tão forte quanto se espera numa manhã. O sol a pino é arvorada para meu coração. Eu gosto dos raios que me atravessam. É comunhão. Tudo é magia, disseram para mim. Assistir pela noite, porém, paralelepípedos silenciados pela ausência de passos, ou pela pouca frequência deles, me alivia o cansaço do dia. Vento frio de uma noite semiárida é vento metafísico de deserto, não me engano quanto ao que ele traz... banho-me dele.
Distante, caminhando, lá eu vejo ele, um senhor sentado escondido em seu chapéu. Pergunto-lhe do ferro cravado na pedra. Me explica e se devassa a explicar o mundo. Ensina sobre o juá, o caju, como colocar um caranguejo dentro de uma garrafa de cachaça, a vida, o homem, a mulher, o segredo, o dizer, o não-dizer, e enfim a transformar água em vinho. Comprar o vinho forte, colocar água e transformar 10 litros em 20. Tudo é magia, disseram para mim. Era o arco do triunfo da cidade de Caicó nas pedras. Pareciam os memoriais do pós-guerra. Lembraram-me dos judeus. E lembrei que Caicó também é judaica, ou melhor, marrana. E olhei a estrela de Davi no anel do senhor escondido em seu chapéu. Seu olho esquerdo era azul de tão cego, e por isso ele tinha o dom de transver, e falava comigo como um Hermes Trimegisto, de tão sobre-humano ou como um Homero, de tão cego, mas visionário... Estranhamente visionário... Mas terrífico também, de escatológicas explicações, gerando em mim admiração e repulsão. Esse homem era o bem e o mal encarnado. A noite estava serena. Do outro lado sorviam erva. Riam para mim. Uma moça bela sorria para mim. Ao fim todos nós éramos famintos animais ocupando as ruas. Fome de algo que pudesse ser nada, para que fosse possível disso fazer algo. O vento de Caicó uivaria o resto da noite, mas talvez eu não escutasse, por causa do sono... a natureza estava ali, independente de eu percebê-la.... mas eu imaginava... tudo é magia, bem que me disseram.
Essa crônica foi posteriormente publicada no Jornal Quinzenal (Caicó, Rio Grande do Norte, 12 de junho de 2023), em versão impressa.