Crítica literária   O transe do transitar em imagens: Uivo, Kaddish e outros poemas

05/01/2023

O livro Uivo e outros poemas foi lançado em 1956, seguida por Kaddish e outros poemas, coroando a geração Beat. Com tradução de Cláudio Willer, pudemos ter acesso a essa reunião de poemas de Allen Ginsberg no Brasil, numa edição da LPM, de 1984.

A reunião desses poemas é, a meu ver, uma declaração contínua do reconhecimento, a seu modo, daquilo que perpassa, pelo menos, os quatro tipos de amores clássicos: a philia (amizade), o Eros (desejo) e o ágape (fraternidade. A sua constante referência a poetas amigos como Jacke Keouac, Neal Cassady, Gregory Corso, William Burroughs, Carl Salomon, as suas referências aos amores vividos com os rapazes que cruzaram seu caminho. Assim também percebemos uma constante devoção sentimental a Deus, o que estaria no conceito cristão de ágape, embora Ginsberg seja um judeu, o que também não o impede de se referir também Jesus em um de seus versos.

Ginsberg é um amigo que olha fundo na poética de seus outros amigos, fala com eles como alguém que segura um binóculo direto na fonte criativa de cada um deles. Celebra-os, acaricio-os com o fato de conhecê-los, demonstra que os conhece, afetuosamente, num verso ou outro disparado, numa dedicatória, numa condução de memória de experiências. Assim também é um corpo que vivencia em cada memória ou imaginação, no pico da sua erótica, o seu mais fundo desejo, perpassado pelas metáforas cromáticas dos sentidos, reforçando o "amor contumaz na paixão fugaz". A referência constante, ao seu próprio sexo, exibe sua poesia como própria de uma poética cujo lirismo é o do eu-sexo, jamais que um mero ser cartesiano, com um sexo a parte da mente, jamais recuado ou temeroso como um poeta fleumático, mas residente numa certa audácia cada vez mais encorajada, especialmente pelas suas experiências licérgias e tantas outras. A audácia de Ginsberg é, ela própria, vista também na sua constante referência e reverência a Deus, para o qual a abordagem parece ser bastante familiarizada, na qual Ginsberg chega a colocar Deus numa personificação (uma transgressão na perspectiva judaica tradicional), conduzindo-o à imaginações em que ambos conversam enquanto Deus senta à sua mesa e come faminto e cansado. A reverência de Ginsberg a Deus é tamanha que ele destaca, inclusive, no sentido de sua condição para morte como uma graça de Deus, deixando declarado que é por Ele que ele apodrece. Assim, os três amores acabam conduzindo também à inevitabilidade da escatologia dos fins. Os fins de uma vivência exaltada na lembrança, os fins de um devir exaltado na condição de morte. E isso não é meramente consequente, mas é, mesmo sendo um resultado, ao mesmo tempo, a base de sua obra e justifica o sentido do termo Kaddish (hino fúnebre na tradição judaica), que é por ele utilizado para intitular o poema fúnebre dedicado a sua mãe. Nesse, os três amores se condensam num só amor, um amor louco, caótico e emaranhado de memórias e vivências cujo sentido parecem ter sido simplesmente o de acontecer, daí que se convertem em imagens potentes pelo o que apresentam, sem explicações ou adornos. Kaddish é um poema cinemático, com o transe das imagens. Ali a mãe é fonte de amor amigo, pois mostra a relação de respeito e afeto entre os dois, amor fraterno, pois Ginsberg mostra instantes da condição maternal de cuidado com ele, e amor erótico, pois Ginsberg imagina, embora descarte a possibilidade de fazê-lo, o que ocorreria se houvesse algo que simbolizasse um coito com o útero primordial (cena essa que polemizou a obra e colocou-a à disposição de apreensão por autoridades policiais considerando-a obscena). A escatologia do fim é anunciada, no entanto, desde o poema Uivo, antes do Kaddish. Nele, Ginsberg anuncia "Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus...".

A riqueza de seus poemas transita na gama de referências que ele realiza para condensar uma escatologia do fim. E isso ele o faz se distanciando do beletrismo literário, fazendo-o no impulso, que ele próprio declara, ao próprio prazer, medida que foge do estetismo difícil e isolado. Trata-se de um instinto selvagem que dialoga com a abstração da reverência e referência a categorias como Deus e morte. Um trânsito, portanto, de imagens em transe, entre o uivo selvático e a oração.