Crítica musical Notas sobre a relação entre compositor e intérprete: Maria João Pires tocando Mendelsson, Mozart e Schulman no Festival de Pâques (2022)
Quem compõe música nunca está só quando coloca sua obra no mundo. Há quem diga que a pessoa compositora seja uma figura solitária sedenta de pessoas. É antes de tudo alguém que trabalha na carência, no sonho e na esperança da recepção de sua obra. Jamais um compositor compõe para o nada, ele compõe para partilhar, porque quer pessoas recebendo algo dele e ele quer, em troca, receber delas, algo que se refira a ele. É uma carência absoluta e não é banal. Para receber, ele dá e dá muito, sem, no entanto, apelar. Ele cria e age como um Deus. Às vezes a obra lhe maltratada depois de nascida, lhe aponta os erros e o que poderia ter sido "se isso ou aquilo fosse retirado ou colocado". A obra, como um espelho, diante dele, nem sempre o encanta, às vezes o que reflete é um grande monstro errante com suas composições. O compositor sofre porque quer dar o melhor a quem lhe escuta. Ele sofre pelo outro. Não é um narcisista, é um mártir e um piedoso, pois lhe confere querer dar, mesmo que a margem do desdém lhe seja muito mais provável.
E, mesmo lançada, não existe obra pronta. Mesmo que a coloque aos outros como "obra concluída", ela jamais está assim. Ela precisa agora de intérpretes, ela precisa de ouvidos, precisa de acolhimentos. Sem isso, é algo que nasceu morto ou que hiberna, esperando uma luz de vida. Assim, o compositor é uma fonte para a fecundação, não um gerador. Quem gera, é quem toma a obra e a executa, a partilha, a vivencia, a escuta. Sua capacidade de criar é a de fecundar, como uma semente no chão, como uma palavra divina de "faça-se algo". Mas, se a vida irá se manter, isso não depende de quem a fecunda. Quem dá vida à obra é o povo que recebe a obra. Nesse povo, está desde alguém que a escuta por acaso e se sente tocado por ela, a quem a executa e quem a interpreta. É um mundo de gentes que geram e alimentam a música.
Tudo isso vale para a arte em geral. Mas, focando na música, e indo adiante com isso, basta pensarmos nas salas de concerto. Quem está ali? Muito raramente um compositor, sempre e frequentemente o povo. Essas linhas, enfim, querem trazer à baila o reconhecimento de uma grande intérprete: a portuguesa Maria João Pires, que interpretou Mozart, Mendelsson e Schulman, com a Orquestra Filarmônica de Monte-Carlo, no Festival de Pâques (2022). Especialmente tocando Mendelsson, Maria João Pires torna possível sentir o compositor como um frescor de manhã: vivo, novo e necessário.
Existe uma grande diferença entre executar e interpretar uma obra musical. Isso deve ser dito e repetido, não como uma frase ranzinza, mas como um lembrete, principalmente para quem acha que isso não existe. Algumas pessoas executam sem dar tanta vida, é uma experiência mais material da música, a execução tout-court do instrumento. Outras lhe dão uma experiência mais vital, ultrapassam o instrumento, lhe dão algo que nova alma ou outra alma, nos conduz ao metafísico, no âmbito de estarmos dentro do instrumento e ao mesmo tempo como se estivesses além dele e graças a ele.
Uma experiência paradoxal que a música pode nos conduzir: nós ficamos indo para fora e de volta ao corpo, porque é o coração que pulsa junto. Maria João Pires faz isso. Ela "conversa musical e manualmente" com os compositores e mostra, no acolhimento da obra, que é possível também a continuidade da criatividade e, mais que isso, a geração da vitalidade, "geração" que não é a do tempo, mas a do "gerar" continuamente, jamais preso unicamente ao tempo falível da história. É a continuidade da vida provando sua força entre o povo, atravessando a pandemia e gerando algo além. É a vida nos dedos de Maria João Pires, cuidando da vitalidade da música.
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