Conto Lovina & Letícia
Parahyba do Norte, março de 1859. Lovina olhava através da fresta a beleza de Letícia. Era noite e chovia... chovia aquelas chuvas de verão repentinas que alastram ruas com água maltratando os bondes, as charretes, os pedestres desprevenidos. Mas Letícia estava em casa, e olhava, admirando, a beleza de Letícia, feita de pele suave, cabelos ondulados, meio lisos, meio cacheados. Letícia morava em uma casa simples e Lovina em um sobrado pequeno burguês na Rua da Areia. Apenas uma árvore de Jambo cortava um pouco a vista do sobrado para o casebre de Letícia. Lovina, apesar do pé de jambo, conseguia ver muito de Letícia, sempre percorrendo o quarto, a sombra d'ela trocando de roupa, deitando, e, na janela, sorrindo, pensando e parada fisgando o céu.
Desta vez Lovina tinha tomado duas xícaras de chá de canela, bem concentrado, para poder ficar desperta. Havia deixado o café de lado por algum tempo. Bebia então o chá acompanhado de seu cachimbo inglês. Gostava sempre de beber o chá desde sua janela e neste percurso descobriu os horários comuns em que Letícia estava em seu quarto. Era pelo fim da tarde e pela noite. Letícia chegava em casa e ficava um pouco nua entre a cama e os afazeres do quarto. Às vezes lia algo, às vezes deitava pensando como que em nada.
Para Lovina tudo soava estranho. "A beleza não é algo que viria da luz, mas do ato de estranhar", pensava. O ato de atingir a beleza estaria guardado num segredo que nem os iluministas nem os românticos haviam descoberto: no modo de ela mesma ser um segredo causador de estranhezas antes de qualquer clareza. A beleza é obscura e, se clara, o é como uma nuvem ou uma neve, traz em si certo mistério, certa figura de sonho, de símbolo para algo que a torne antes que explicada um feixe de significados jamais descobertos.
O corpo de Letícia, era essa ideia de beleza para ela. Aquilo que era tão exibido e ao mesmo tempo escondido pelo pé de Jambo que ao chão derramava o tom rosado-vermelho expandindo um tom cromático forte ao cenário do seu desejo despejado. E ela sentia vontade de mergulhar naquele corpo, feito o rosado-vermelho mergulhado na terra.
Como o conseguiria? Decidiu que não tentaria, a olharia continuamente...
Tomou uma, duas xícaras de chá e continuou a observar Letícia... Ela não sabia, mas Letícia estava ciente de que era observada por ela. E se deixava ser...
Isso durou até o susto que teve quando Letícia foi fechar a sua janela. Era sempre o mesmo susto, e Lovina se esquivava, fumegante, para não ser vista.
Nos seguintes dias Lovina refez o mesmo, preparou o chá e foi até sua janela, mas Letícia não estava. Repetiu por vários dias o mesmo caminho à janela e apenas encontrava a janela do quarto de Letícia fechada.
Numa tardinha, quando o sol já estava se abraçando às nuvens de partida, Letícia decidiu descer do sobrado e ir fazer algo inédito até então. Sempre tomou café em seu próprio sobrado, pouco saíra de casa. Mas neste dia escolheu tomar um café com tapioca numa venda próxima à casa de Lovina.
Sentou-se numa cadeira velha em frente à venda, pediu um café e um pouco de queijo no mel. Enquanto esperava o pedido, ascendeu um cachimbo e ficou observando a janela do quarto de Letícia entre a fumaça, que contornava seu desejo e, desta vez, uma estranha saudade sem qualquer dose de otimismo.