Crônica O gato por fora
Para Angelita
Quando li "O gato por dentro" de William Burroughs há alguns anos, eu buscava entender o universo interno dos gatos na sua relação com os humanos. Lembro que era uma espécie de rito de passagem que eu mesma me incumbia a fazer. Rito para aprender sobre algo que, para mim, era um mistério, afinal eu cresci assistindo gatos matarem os pardais dos meus telhados e tomava-os, por isso, como perigosos. Recordo várias manhãs eu ter encontrado no meu quintal fileiras de passarinhos mortos pelos gatos que circundavam a casa. Mas desse caminho de tentar aprender o gato por dentro, passei a ter a mania de tentar também enxergar o gato por fora. Como corria, como interagia, como fazia suas tocaias...
Surgiu no gramado de súbito, serelepe como os duendes e pululante como um prisioneiro liberto. Brincava no gramado chamuscado de pedras e insetos, coisas que lhe roubavam a atenção. Era pequeno, muito pequeno. Mas ainda assim não tanto como um filhote. Uma amiga lhe deu o nome de fraque. Possuía uma manta negra de pelos sobre a pelugem branca, e realmente, parecia vestir um fraque. Notei seus olhos semicerrados, de uma abertura muito fechada. Estava brincando. Corria demasiado. Muito fulgor. De repente correu contra um pneu de carro e chocou nele sua cabeça. Voltou correndo e deitou-se no chão como que tentando se libertar de uma dor. Seria a dor da pancada? Logo descartei, de pronto parecia um engasgue. Foi perdendo os movimentos e aquela teimosia em tentar sair do desconforto, e que lhe garantia ares de estar em instantânea convulsão.
Minha amiga pediu para que eu o segurasse enquanto ela iria buscar o carro para levarmos ele ao pronto socorro de animais. Eu notei que eu não precisava contê- lo para que fugisse, pois ele já não tinha mais forças para movimentar-se. Ia desfalecendo, desfalecendo... Desisti e quando ela chegou eu sinalizei sua morte. Insistente, ela tentou sentir seu coração e disse que ainda estava pulsando. Pediu-me para levá-lo comigo no carro. Eu jamais havia segurado qualquer ser vivo em caminho de morte. Jamais havia assistido a morte chegar a um corpo de um mamífero. Ele estava sem vigor algum. Seus olhos estavam abertos e tesos como que extasiados olhando fixo para alguma dimensão incomum. Lembro que minha mãe dizia que gatos possuem olhos biônicos. Que conseguem ver coisas que não vemos. Sofia Netrovski tem um dizer muito bonito dos olhos felinos: "É um jeito que eles têm de olhar para as coisas e nunca as esgotar. Podem passar uma vida toda olhando para as mesmas paredes como se uma vida só não bastasse para dar conta de apreciar tudo o que uma parede é." O que será que ainda enxergam em um momento desses, em que o ver vai se esvaindo? Eu não poderia responder a essa pergunta, contudo poderia, desde fora do gato, observar seus olhos enquanto travessias para algo outro que eu própria não via.
A mandíbula aberta ainda resistia respirando seus últimos suspiros com dificuldade. Eu sabia que não iria adiantar, ele estava morrendo. Não haveria chance de sobreviver. Mas minha amiga insistiu. Ao chegarmos ao médico eu tive de pegar o gato, e dessa vez saia sangue de sua orelha. Senti o toque da gota gelada em meu pé direito. Vi a mancha vermelha e me espantei. Eu estava segurando um cadáver. O médico sinalizou sua morte, minha amiga fumava isolada do lado de fora se recusando entrar. Estava morto. Não tinha nenhuma chance. Parecer do médico: "provavelmente envenenado". Um parecer que não foi desde o gato por dentro, mas desde fora: pelo o que parecia desde o provável. Enfim, o gato por fora era aí o gato por dentro.
Curiosamente minha amiga se chama Ângela. Seu nome vem de Angelus, o latim para Anjo. Naquele instante, ao se referir ao fraque, então morto, ela falou "fraquinho". Pensei comigo que a morte é um anjo que disputa com outros anjos suas conquistas. Fraquinho não resistiu, deixou tudo ir dentro de si e petrificou seu olhar para a violenta sedução eterna da morte, que há de vencer sempre, pois que ela dá o único alívio ao insuportável. Jamais perigosos assim, como eu um dia pensei, os gatos. Perigoso sim, o que lhes ronda, mesmo num belo gramado numa noite ventilada de domingo inocente abraçando suas tocaias brincantes. Fraquinho se foi como os meus pardais, atravessando a teia frágil da vida como um gesto de aventura arriscada e sem mais.