Conto Enquanto os insetos não choram
A moça do terceiro andar, Elisa, segura firme seu gato enquanto lhe fala sobre seu sonho. Não há ninguém para lhe ouvir a não ser ele, com seus olhos semicerrados de sono e preguiça. É manhã de sol e lá fora os carros correm no asfalto como cavalos agitados pelo toque das botas dos cavaleiros nas estibeiras. Uma boa segunda-feira deve começar assim, pensam. Mas Elisa calça seu chinelo devagar, enquanto segura sua xícara morna. É um tempo de vendaval de sol, é um verão incisivo. Haja luz, haja dia para tanta coisa ser concluída em calor. Mas ela só pensa em seu sonho e quer compartilhar com seu gato... Elisa havia sonhado que um bezerro chorava a morte de sua progenitora em uma fazenda com um vasto rebanho ordenhado. No sonho, Elisa tentava salvar o bezerro, mas não conseguia. Acordou de súbito, e lhe veio na memória o almoço de domingo que antecedia aquela segunda. Lembrou que comeu carne. Lembrou do bezerro. Lembrou, especialmente, da lágrima dele.
Olhando as pupilas multifocais do seu gato, pensava sobre como a alma pode se expressar no olhar dos mamíferos. Pensava e se sentia como uma devoradora de vidas selecionadas. Andou até perto de sua varanda e observou os carros no asfalto. Enquanto bebia seu café, se perguntava agora para qual destino aquelas pessoas em seus carros estavam indo. Provavelmente, pensava, para seus trabalhos, a partir do que teriam suas rendas para gastarem em supermercados comprando carne. Sentia uma angústia imensa e era atravessada pelos olhos pequenos do bezerro na memória enquanto observava, intermitente, os olhos de seu gato. Em pouco tempo o bezerro e o gato eram um só em seus afetos, quase fundidos um ao outro.
Apontou para a esquina o seu olhar estranhado e, vendo as serras cortando o horizonte além dos asfaltos, sentia-se uma intrusa na natureza, se alimentando dela, cortando-a com estradas, máquinas e construções, com sua horda humana. Sua própria moradia era uma anomalia violenta. Parada na varanda do terceiro andar, sentia-se uma versão, entronizada no alto, da descendência irmã das loucuras de Calígula, Nero, Robespierre... Aliás, toda a humanidade não estaria distante desses personagens violentos. A própria humanidade seria a força da violência descomunal e astuta contra a vida e a natureza.
Um sentido de vazio, angústia e falta lhe invadia. O café esfriava, enquanto o barulho dos carros começava a parecer menor, a hora entardecia, e uma sonolência repentina lhe batia o corpo. Era um misto de indisposição diante do mundo e preguiça. Não queria abraçar a segunda-feira como um dia para seguir em frente. Perdia a fome, estava enlutada. Dividindo o luto com o bezerro do sonho, se deixava mergulhada na sua melancolia, sem culpa de se dedicar a isso. Ao mesmo tempo, estava, enfim, reconhecida desde si como uma salvadora fracassada e a quem só restava o lamento em partilha. Sentir pesar pela vaca morta no sonho era sentir agora a dor por todas as vacas mortas na realidade. O bezerro do sonho agora representava todos os bezerros nas fazendas do mundo.
Ainda na varanda, em que começava a fazer sombra, deitou-se na rede, enquanto começou a desmarcar seus compromissos via mensagens no telefone. Estendeu as pernas para cima e olhou bem o céu entre a sacada e a rua. Acendeu um cigarro enquanto a fumaça lhe turvava a visão da luz do dia. O céu começava também a ficar nublado repentinamente. Tudo parecia espesso e lacrimal em sua volta. Tudo ficava ao mesmo tempo cinza e não parecia que haveria em breve uma hora como o meio-dia, porque tudo parecia também se anoturnar. Mas o meio-dia chegaria, com cheiro de carne, inevitavelmente.
Começou a pesquisar e ler materiais virtuais, revistas e jornais sobre direitos dos animais, veganismo e afins enquanto pensava que deveria tomar alguma decisão, mudar algo, redimir-se por tudo o que aconteceu no sonho, o que já lhe era tomado como um aviso, um sinal, uma advertência moral em sua própria vida. Sentiu debaixo de si um caderno pequeno que havia deixado na rede outro dia. Era um caderno de anotações e desenhos. Ao folhear, viu desenhos que havia feito de insetos. Besouros e formigas. Começou a pensar sobre eles. Lhe veio então a consciência de que pisava diariamente sobre as formigas e que já havia matado besouros. Um sentimento de horror lhe inundava. Lembrava da infância, em que assustava as formigas com os próprios dedos, fazendo-as fugirem porque temiam morrerem amassadas... lembrava também dos voos desnorteados do besouro em fuga, enquanto o buscava para amassá-lo com um livro... Pensava agora que não conseguia sentir a dor que sentiu ao ver o olhar do bezerro. O horror era diante de sua incapacidade de sentir. Uma formiga é apenas um ponto preto no chão. Um besouro apenas um inconveniente muitas vezes. Não choram. Não conseguia ver seus olhos, não conseguia atestar suas almas. Começava a sentir então que o que poderia ser uma sensibilidade à vida de certos animais se devia talvez ao que de tão íntimo e nosso, demasiado humano, víamos neles: o olhar e a possibilidade da lágrima. A questão não era, então, sobre outros animais, mas sobre nós? Seria sobre outro modo de nos fazermos extensão em outros seres por guardarem nossa semelhança? Nossa representação narcísica ou nossa elevação moral? Enquanto folheava seu caderno, pensava e se afundava nos detalhes das questões, gerando outras perguntas sem respostas. A campainha tocou. Seria provavelmente sua irmã com o almoço em mãos, como de costume, ao meio-dia. Precisou sair com rapidez da rede para abrir a porta. Ao pisar no chão, pisou numa formiga sem que percebesse. O gato pulou para dentro da rede acolhedora. Os dias seguiram. E outras segundas vieram.