Crítica de teatro   Chega de falsos milagres

05/01/2023


Quando a peça Milagre Brasileiro - dirigida por Márcio Marciano e executada pelo Coletivo de Teatro Alfemim - estreou o Brasil há 12 anos, vivíamos tempos mais democráticos e sequer imaginava-se dentro de uma véspera de golpe político ou algo parecido. A cultura estava se alimentando razoavelmente melhor que outras épocas, é certo. Mas isso não nos deu um cenário florido, risonho e maravilhado em plenos lençóis de alegria incontornável. Afinal, somos um país que vivenciou 21 anos de ditadura militar e carrega uma história de um pouco mais de duas décadas com terror, dor e sangue. Parafraseando Maiakovski, mas de modo invertido: "estávamos alegres é claro, mas por qual razão não ficaríamos tristes?". A ressaca de uma ditadura não acaba, pois o "porre" é grande. Assim, em um cenário democrático conquistado, a missão acaba a de ser a de reforçar a memória como um ato político, na intenção de lembrar as novas gerações sobre o perigo de se repetir o que não deveria sequer ter ocorrido, fabricando tempos tão sombrios. A nossa emoção nessa missão não era, por outro lado, a ansiedade do porvir, mas a angústia da história. Angústia essa que usamos como estofo e ingrediente para fazermos e recebermos arte, com aquela coragem que só a dor pode explicar, pois ela é reativa, "brinca com fogo e age duas vezes antes de pensar". Isso, em matéria de arte, é prato cheio, e o foi para essa peça.

O Milagre Brasileiro reforça a missão da memória política ao colocar no enredo o clima e o cenário regado pelas consequências do Ato Institucional nº 5, que fez desenrolar uma série de presos políticos torturados. Para o assunto, dois principais arquétipos são capturados para o tema da peça, a família, a polícia e a figura de um jovem poeta esperançoso da liberdade. A peça é carregada de uma comunicação visual satírica em relação à família, um humor ácido, risível e ao mesmo tempo doloroso, que expõe comportamentos, trejeitos, sinais e símbolos do lugar da família brasileira e da instituição policial na sua relação com os ideais fascistas.

O fascismo é expresso em máscaras grotescas, como referência à violência e à morte, ao passo que o jovem poeta é visto em seu rosto nu, triste e angustiado, insistente, porém, na aposta da liberdade e da esperança afunilada. O entreguismo cultural também é bem exposto na peça. O pater familias (pai de família), seguindo quase todo o padrão patriarcal e patrimonial da tradição da família, se apresenta em francês, o que salta-nos como uma boa ironia para a referência a um país como o nosso, cujos ideais de república e sociedade foram importados da frança, culminando na apropriação do lema positivista francês "l'amour comme príncipe, l'ordre comme base et le progrès comme fin"(o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim) , retirando, contudo, exatamente o amor, e nos deixando a fracassada relação entre "ordem e progresso". Assim também ele balbucia algumas palavras em inglês, para o que dispensamos justificativas aqui, pelo a obviedade que nos salta no tema da relação entre a direita e o imaginário da cultura estadunidense.

Surpreendente é a personagem interpretada por Zezita Matos, que abre a peça, no bem dizer, "trazendo verdades". Zezita consegue dar o tom trágico da peça e a atmosfera que sem sua presença, com toda certeza não teria a mesma incidência. A peça também se torna muito mais robusta com a música, elaborada com piano, violino e violoncelo, seguindo um rigor harmonioso com a atmosfera da história da peça, trazendo densidade e peso. A iluminação e a ambientação foram certeiras, pois casaram com sugestão de uma época de penumbra e chumbo. Quando a peça foi lançada na cidade do Coletivo Alfemim, em João Pessoa, foi possível assistir em um galpão no centro histórico, o que ofereceu a possibilidade, certamente, de nos sentirmos dentro de um "porão" Experiência mais conveniente para essa peça seria impossível. Isso porque a sensação de estar em um porão nos conduziu ao sentido dos "porões da história" da ditadura.

De 2010, ano de lançamento da peça, até o ano de 2022, vivenciamos a experiência de um golpe político e nisso um presidente defensor das torturas na ditadura foi eleito. Há muito deixamos o cenário democrático e de fomento à cultura. Também há muito nossa missão de memória política esteve mais atrelada à angústia do passado e ao nosso compromisso com isso. Agora estamos diante da ansiedade do porvir. O atual presidente eleito em 2018 é o mesmo que zombava da presidência anterior que havia montado a Comissão da Verdade, para investigar, julgar e punir crimes da ditadura. A ela ele associava a um cachorro procurando por ossos, como mortes inúteis. Mas não era por mortes inúteis que ela procurava, mas exatamente pelas figuras cadavéricas (similares aos personagens da peça) - no tom figurado que isso deva dar - que ela buscava, para fazer justiça com a história. Esses eram os ossos que ela, com razão, procurava. Ossos esses que vimos nos rostos grotescos da família fascista na peça.

Doze anos depois d'O milagre brasileiro ter sido lançada, aqui estamos lutando para que a democracia se reestruture. A ditadura, fragmentada e mascarada, se insiste como ideologia em doses e em pequenos disfarces de democracia e tenta, ainda, bater nos portais do país oferecendo um suposto retorno milagroso. Manca, a democracia tenta se levantar, a cada dia, diante das ameaças de gente fascista permeando o solo brasileiro. Doze anos depois dessa peça em rebento, cá estamos! 12 anos! Invertendo o número, lembramos, ironicamente, dos 21 anos de ditadura. Um anagrama numérico emblemático. Percebe-se que agora a nossa memória se confunde com estranhas previsões de futuro, a angústia do passado se entrelaça com desconfortáveis ansiedades do porvir e uma fagulha de esperança em alguma suma de luta. Ou a história "parou" ou ela mal se movimentou. Por pouco ou por nada somos parte da peça. Chega de falsos milagres!