Crítica de teatro   Aprender com Branca Dias

05/01/2023

Com texto de Miriam Halfim, direção de Emanuel David D'Lucard e montagem da Companhia Popular de Teatro de Camaragibe, a peça Senhora de Engenho: entre a Cruz e a Torá, que completou no ano de 2022 seus 10 anos, traz à tona uma partícula importante da vida da famosa Branca Dias, uma personagem que se insere tanto em relatos que se propõem históricos, como em relatos lendários, míticos e fantasiosos no nordeste brasileiro, especificamente entre a Capitania de Pernambuco e da Paraíba. Branca Dias foi uma personagem atribuída à saga do povo sefardita marrano, judeus convertidos à força ao cristianismo no período de perseguição pela inquisição portuguesa. Eram os também chamados cristãos-novos, e entre eles estiveram muitas pessoas que, fugindo da fogueira, imigraram para a colônia portuguesa no período de colonização do Brasil. Nesse povo, ancestral especialmente dos nordestinos, se destacou Branca Dias. Mulher "letrada", ela teria ensinado e incentivado pessoas a ler e escrever em Olinda, criado a primeira escola da colônia, convivido com pessoas das letras (inclusive com o escritor Bento Teixeira, autor da primeira obra literária da colônia, Prosopopeia), e por isso fizera algo proibido pela cúpula católica, que por sua vez atribuía o letramento e as atividades intelectuais a uma recusável e condenável "prática judaizante". Mas não foi apenas isso que marcou Branca Dias como uma cristã-nova herege. Dize-se que ela reservava o Shabbat judaico e que respeitava a Torá. A soma de tais práticas acabou por colocar Branca Dias na mira da perseguição católica, que, dizem, acabou por levá-la à fogueira da inquisição.

Mas não é esse momento que a peça nos mostra, e talvez seja esse fator que mais torna a peça intrigante e destacável, não porque mantém uma suposta negação ao momento trágico, mas antes, pela comprovação da onipresença do trágico na vida de Branca Dias, de tal modo que a representação de um fato trágico específico ou culminante seria redundante, excludente, reducionista e, o pior, muito esperado. O desfecho trágico de Branca Dias é, antes, um sinal semiótico sutil durante a peça, que permeia os laços do enredo. Ele sugere-se na trama e se lança não na representação, mas em algo mais forte e profundo: no imaginário do público. Assim, é mais forte porque pode lançar mais elementos que um roteiro representacional, e é mais profundo porque permite que um coletivo de espectadores possa lançar-se no imaginário, abocanhando possibilidades múltiplas de ideias, em suas colorações, intensidades e teores. Nada disso é feito com muito esforço. Trata-se apenas de uma sugestão. Sugerir algo à imaginação. Algo não definido, mas identificado. A identidade aí é a vida e o destino de Branca Dias. Nada se define sobre o que lhe é histórico ou lendário, mas conseguimos, ao menos, identificar onde e como se trata de Branca Dias. Não há complexidades, hermetismos, limites. E a sua história se conta fazendo-se sem muitas exposições, divisões e sequências. É como se a peça mostrasse um tipo de suficiência narrativa alcançada.

Outro destaque para a peça são as doses de comédia insinuante, e também sugestiva, que perpassam o triste enredo de Branca Dias. A comédia, contudo, nessa mescla com o trágico, não o minimiza, ao contrário, consegue arrancar o riso deixando a reserva da clássica relação entre temor e compaixão pelo destino de Branca Dias.

A peça é bem ambientada em uma representação de sala colonial, com muitas velas. Porém, quanto ao aspecto sonoro, a escolha ficou um pouco a desejar. E, quer queira quer não, uma musicalidade errada num ambiente certo empobrece o ambiente que, com uma música certa, ficaria mais adequado esteticamente - pois o ambiente não é só o que ele possui de coisas, mas o que ele pode reverberar. A opção pela música de Loreena Mckennitt fracassou com o contexto da peça. Ideal seria que a seleção musical buscasse boas fontes retiradas dos registros do cancioneiro popular sefardita espalhada pelas capitanias da colônia e dos quais há belas reproduções disponíveis e catalogadas por grupos de músicos pesquisadores, que poderiam ser consultados. Do ponto de vista estético, a falha com esse elemento faz perder em muito no valor da peça, pois, longe de parecer que falta cabedal musical, parece que não houve nenhuma pesquisa a não ser o recurso a algo mais fácil à mão.

Sem concessões, porém, a peça é, e não deixa de ser, uma excelente vivência memorial de Branca Dias, e se revela importante como elemento de acervo cultural que convida ao repensar a história, os fatos, lendas e o destino de Branca Dias, uma das ancestrais mais intrigantes e cheia de mistérios dentro daquilo que se tornou o nordeste brasileiro - onde, inclusive, vale lembrar, começou o Brasil. Assim, a peça, ao trazer Branca Dias, traz também para nós a oportunidade do mergulho na vista imaginária do que poderia ter sido a perseguição, a intolerância e a ideologia no surgimento do país. Branca Dias, então, vem, dentro da peça, fazer aquilo que marcou sua vida nos trópicos: ensinar algo e fazer algo reverberar até hoje. 

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