Crítica de cinema Além da chama, as cinzas: Une flamme dans mon coeur (Alain Tanner, 1987)
O filme narra a vida de uma atriz, chamada Mercédès (Myriam Mézières (que está em um relacionamento conturbado com um homem psicótico, Pierre (Benoît Régent), com quem termina e retorna inúmeras vezes. O filme começa com o décimo primeiro encontro dos dois após um décimo término "para sempre". Mas, enfim, a atriz se mostra serena ao tentar contornar as psicoses do ex companheiro, mas não é serenidade de plenitude ou tranquilidade, mas aquele estado de ser sereno que os melancólicos possuem, um modo lânguido de se colocar. No caso de nossa personagem, isso se aprofunda com sua posição enquanto mulher diante da figura masculina, que a ama tanto quanto a oprime.
A conselho de um amigo, que sugere-lhe uma fuga para um hotel, lá ela se refugia, onde pretende não ser encontrada pelo ex companheiro e acaba por, em um metrô encontrar o homem, Johnny (Aziz Kabouche), que seria, em tese, o substituo do buraco negro deixado pelo companheiro anterior. O atual é o oposto dele. Com as virtudes e a sabedoria que outro carecia. Chega mesmo a ser submisso em algum sentido. Rompem-se, de algum modo, aquelas velhas arraigadas relações inconscientes de poder regidas pelo homem sobre a mulher. Ele se entrega a ama. Mas isso não parece preencher de luz o buraco negro que o antigo relacionamento deixou. Ela fica agora perturbada e sente-se carente. A potência das qualidades a torna dependente dessa "promessa de felicidade" que tais qualidades insuflam.
E isso pode ser também dito pela analogia que a nossa personagem faz, ao dizer que encenar Racine ou encenar uma masturbação ao vivo é a mesma coisa, tem o mesmo sentido. Nada mais faz sentido a partir do princípio de identidade e diferença, essencial para sabermos opinar, decidir, julgar. Tudo é, ao fim, o mesmo. No panorama de suas duas relações, temos, de um lado, a angústia da falta na experiência com um companheiro que lhe entregava o vazio, e, do outro, a angústia da falta da falta, na experiência do companheiro que lhe entregava tudo. Assim, a angústia, a recusa e o tédio diante do mesmo lhe chega como cenário de vida em todos os setores. Caímos, ao mesmo tempo aqui, naquele velho dilema psicanalítico, acrescido talvez pela pergunta que Freud jamais conseguiu responder, e, claro, carregado de incompreensões clássicas geradas no homem em relação a mulher: "o que quer a mulher?".
Com claros detalhes típicos da Nouvelle Vague, o filme não traz algo tão novo ao expor uma relação entre "um homem e uma mulher" e seus percalços em tons psicologistas (lembremos de Acossado, Une femme est une Femme e Pierre le feau de Godard). Mas o filme de Tanner tem, ao contrário, um espírito muito mais melancólico. Também não se permite ser uma "ode" ao mesmo tempo alegre à relação de dependência versus independência entre um homem e a mulher, como há nos filmes de Godard. E é antes uma exposição angustiante no sentido existencial do termo, naquele sentido de que é aí, na angústia, onde se realiza a dolorosa reflexão existencial que estabiliza a ponto de fazer tudo parar.
Leipzig, Alemanha, 05 de janeiro de 2016